quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O SUS e os contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde

Justificar
Lenir Santos*

Nenhum sistema de saúde público sem organização, parâmetros, critérios epidemiológicos, protocolos de conduta, regulamentos técnicos, critérios de incorporação de tecnologia e limites de gastos dará conta de atender à demanda ofertada na sociedade, cada dia mais sofisticada e que poderá, muitas vezes, ter muito mais a ver com interesses financeiros do que com interesses humanísticos.
Todavia, não podemos ter a ingenuidade de acreditar que os governos também não tentam mitigar o direito à saúde mediante diversos subterfúgios. Por isso, não podemos perder de vista os dois lados da moeda nos pleitos da saúde:
a) as evasivas de governos inconseqüentes que tentam desprover de conteúdo os direitos sociais, priorizando políticas que os esvaziam de sua qualificação constitucional. Contra isso, na saúde, temos como ponto de partida o disposto na EC 29, que vincula percentuais mínimos para a saúde e que devem ser cumpridos sem maquiagem e outros artifícios e outros ditames legais e constitucionais; [Na Folha de S.Paulo do dia 4/6/2006, Jânio de Freitas, em sua coluna, com muita propriedade, descreve alguns fatores de condicionam e interferem com a saúde, sem, contudo ser responsabilidade do setor saúde a sua realização. Muito pertinente a crítica ao governo Lula, que incluiu ações, como o Bolsa-Família, nas despesas com saúde com o único fim de tentar maquiar os gastos com saúde, em razão dos recursos mínimos que a Constituição impõe aos entes federados.] e
b) os excessos que as pessoas pretendem para si — em absoluto desrespeito ao interesse coletivo — que são, muitas vezes, reforçados por ordens judiciais que interferem e atrapalham o planejamento da saúde. Contra isso, somente o bom senso de juízes e promotores poderá minimizar a demanda por medicamentos e procedimentos complementares de pessoas que escolheram o sistema privado e pleiteiam do SUS serviços complementares, sem obrigar-se a respeitar sua normatividade; ou, ainda, de pessoas que, mesmo estando no SUS, pretendem medicamentos e procedimentos que estão fora de protocolos e regulamentos técnicos fundados em conhecimentos científicos atualizados.
Por fim, o Poder Judiciário na saúde poderá ser um grande aliado contra os abusos e as evasivas do Executivo, mas não pode decidir quanto gastar nem como gastar, uma vez que isso já está definido em leis, sendo essa competência do Legislativo e do Executivo. Não tem o Judiciário legitimidade para alterar leis orçamentárias, percentuais de tributos vinculados, critérios legais do planejamento da saúde. Quanto gastar, a EC 29 já o diz; em que gastar, o art. 200 da CF, de maneira mais abrangente, e a Lei nº 8.080, em seus arts. 6º, 7º/VII, 35º, 36º e 37º já o fazem.
Qualquer demanda judicial da saúde deve ver respondidas algumas questões, como:
• Qual o conteúdo dos planos de saúde discutidos e aprovados nos conselhos de saúde (representação da sociedade na definição da política de saúde local, estadual e nacional)? Estão sendo cumpridos?
• Quais as reais responsabilidades do ente federado no âmbito dos pactos de gestão [Portaria MS nº 399, de 22/2/06]— documento definidor, entre os entes federados, de suas responsabilidades com a saúde? Estão sendo cumpridas?
• Há compatibilidade da política de saúde com as disponibilidades de recursos financeiros, conforme recursos mínimos derivados dos percentuais previstos na EC 29 (15% para os municípios, 12% para os estados e valores iguais aos do ano anterior, acrescidos da variação do PIB, para a União)? A EC 29 está sendo cumprida?
• O paciente escolheu o sistema público de saúde, com todas as suas nuances organizativas, técnicas, principiológicas etc.?
• A terapêutica prescrita pelo profissional público de saúde está em conformidade com os regulamentos técnicos, os critérios epidemiológicos, os protocolos de conduta, a tecnologia admitida, a padronização de medicamentos do SUS?
• Esses regulamentos estão sendo periodicamente revistos, a fim de manter a necessária (de acordo com o critério epidemiológico) atualização técnico-científica?
As decisões judiciais, quando desbordam de sua competência, interferem de forma negativa na organização e implementação do SUS, colocando em risco o princípio da igualdade, uma vez que aqueles que recorrem ao Judiciário podem ser mais beneficiados do que aquele que adentrou o SUS voluntariamente, além de poder estar atendendo, de maneira indireta, demanda das indústrias de medicamentos.
Ao Judiciário compete coibir os verdadeiros abusos das autoridades públicas na saúde, não deixando nunca de analisar se estão sendo aplicados recursos financeiros de acordo com os percentuais mínimos constitucionais; se a execução dos serviços se funda em critérios epidemiológicos, técnicos e científicos; se mantém as unidades de saúde abastecidas de todos os medicamentos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e se a revê periodicamente, fundada em dados científicos etc.
Esses fatos qualificam verdadeiramente o sistema público de saúde, inibindo omissões das autoridades públicas e interesses individuais que poderão implodir o sistema público de saúde que deve ser solidário e cooperativo por excelência.

Radis nº 49 – Setembro de 2006

* Advogada, especialista em direito sanitário pela USP, procuradora aposentada da Unicamp; este texto é a Conclusão do artigo, cuja íntegra está no site do RADIS, seção Exclusivo para a Web (
www.ensp.fiocruz.br/radis/web/49/web-02.html)

Nenhum comentário:

Postar um comentário