domingo, 27 de novembro de 2011

Entrevista sobre a 14ª Conferência Nacional de Saúde

            Entrevistamos o Educador Popular do CEAP e professor de Filosofia Valdevir Both. O entrevistado participou de forma sistemática dos debates do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social desde a sua primeira edição em Porto Alegre e foi membro da Comissão Organizadora e da Secretaria Executiva da I Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social realizado em Brasília no mês de dezembro de 2010. Na entrevista fala do desafio da 14ª Conferência Nacional de Saúde no sentido de relacionar o SUS a uma estratégia de desenvolvimento no Brasil, indicando a inclusão da saúde pública na centralidade do debate nacional.

CEAP: Prof. Valdevir Both, o Brasil realiza este ano a 14ª Conferência Nacional de Saúde. O que esperar desta Conferência?


Espero que a Conferência tenha um caráter político de defesa do SUS e não técnico ou temático. Me explico!


Estamos num momento em que o Brasil está apresentando ao mundo números muito importantes sobre a melhora das condições de vida da população. O IPEA, no seu Comunicado n. 104, de Agosto de 2011, após apresentar um estudo sobre a “a natureza e dinâmica das mudanças sociais em curso no país”, concluiu que a última década registrou, pela primeira vez na história brasileira, uma ruptura entre o fortalecimento da industrialização nacional e o aumento da desigualdade. O Brasil, segundo o IPEA, nos últimos dez anos, teria fortalecido a indústria nacional e, ao mesmo tempo, diminuído a curva da desigualdade. São parte destes avanços, a criação de postos de trabalho, o fortalecimento do poder de compra do salário mínimo, a adoção de programas de transferência de renda, etc. Esses dados, aliados a uma perspectiva futura de continuidade de enfrentamento da pobreza, sinalizam para a possibilidade de um novo modelo de desenvolvimento em curso no país, que articula crescimento econômico e a redistribuição de renda e melhora das condições de vida da população.


No entanto, se estes dados sinalizam para uma possível mudança no conceito de desenvolvimento no país, em que a agenda social figura como eixo estruturante e não como programas periféricos, em algumas políticas sociais específicas como a saúde os avanços parecem ser ainda muito tímidos nos últimos anos, de modo a comprometer a própria implementação do novo conceito de desenvolvimento. Esses avanços tímidos na saúde se mostram na crise generalizada que enfrentamos hoje na saúde pública, fruto da progressiva privatização e desestruturação do SUS, que impede a universalização de fato da saúde para todas e todos. Mesmo que tenhamos melhorado nossos indicadores da saúde e avançado significativamente em algumas políticas ou áreas específicas da saúde, estamos muito longe da “reforma sanitária” idealizada pela 8ª Conferência Nacional da Saúde de 1986. A 14ª Conferência deve dizer em alto e bom tom que não há desenvolvimento sem saúde de qualidade para todos. É uma contradição absoluta o Brasil rumar para 5ª economia mundial sem melhorar consideravelmente a saúde pública.


Quero dizer que o Brasil (políticos, movimentos sociais, empresários, profissionais da saúde, cidadãos...) ainda não entendeu ou não está convencido que a saúde é parte estrutural de uma agenda de desenvolvimento. Ainda não conseguimos entender, por exemplo, que um Sistema Único de Saúde é muito mais do que a prestação de ações e serviços em saúde. Ele é, ou poderá vi a ser, um dos maiores programas de transferência de renda do Brasil ao evitar que as pessoas invistam sua renda ou se desfaçam de seus bens para custear suas necessidades de saúde.


CEAP: Seria possível, portanto, explicar a não regulamentação da EC-29 que já dura mais de dez anos, como consequência de uma não compreensão do SUS como componente estratégico do desenvolvimento social brasileiro?


Diria que sim. A não regulamentação da EC-29 é típico exemplo da falta de visão estratégica do Brasil em relação à saúde pública. Mesmo que ela não resolva o nosso problema do financiamento da saúde, e precisamos ter ciência disso, a sua regulamentação poderia ser um passo a mais na qualificação do SUS. No entanto, o desfinanciamento da saúde pública indica que ela ainda figura apenas como um gasto e não como um investimento num projeto de desenvolvimento.


No entanto, no caso da EC-29, temos ainda outro fato que mostra essa incompreensão ou mesmo o descompromisso do Estado com a saúde da população. A EC-29 tem servido nos últimos anos como moeda de troca para muita negociação do Congresso Nacional com o governo federal, Estados, Municípios, partidos, etc. Mas, nos últimos dias, os congressistas conseguiram uma nova proeza. Ouvi estarrecido que deputados e senadores, ligados a algumas bancadas, estavam ameaçando aprovar a EC-29, o que aumentaria os gastos do governo com a saúde em alguns bilhões, em retaliação ao governo federal que estaria aumentando a fiscalização em alguns Ministérios como enfrentamento da corrupção. Pasmem! Até poucos dias apostava que a aprovação da EC-29 era fruto do compromisso dos congressistas para com os direitos do cidadão, que muitas vezes amarga longas filas ou paga o preço de um sistema ainda débil com a própria vida. Mas não, veio como proposta para retaliação política! Esse é o nível atual da discussão no Brasil. É óbvio que no exemplo não se incluem todos os deputados e senadores. Mas o fato de vir à tona uma proposta desta natureza mostra uma absoluta despolitização do debate e o absoluto desrespeito do Congresso e dos partidos para com os cidadãos.


CEAP: Mas o que tem a ver essa discussão com o que chamas da necessidade de uma Conferência Nacional da Saúde com caráter político e não técnico?


Tudo a ver. A Conferência tem hoje o desafio de pôr a agenda da seguridade social, na qual se insere a saúde, na agenda do desenvolvimento (num conceito ampliado) do Brasil. E isso não é um debate técnico ou temático localizado, mas profundamente político. Ficaria muito mais satisfeito se saíssemos da Conferência com 10 propostas apenas, mas com essa natureza política ampla, do que as 860 da 13ª, sem considerar as 157 moções. Uma Conferência com tantas propostas parece carecer de foco. Com isso não quero minimizar a importância e os esforços que são feitos, inclusive pela minha entidade, o CEAP, para que as Conferências se realizem. No entanto, acho que chegou a hora de inovarmos na metodologia e no conteúdo.


Do ponto de vista metodológico, sendo consequente ao afirmado anteriormente, deveríamos sair das quatro paredes em um dos dias da Conferência e ganharmos as ruas. Fazermos uma espécie de Marcha em defesa do SUS, em que caminhássemos pelas ruas com faixas, cartazes, apitos, em direção ao Congresso, Ministérios e visitarmos a presidenta Dilma.  Acho que o esforço e o custo de trazermos tantas lideranças da saúde à Brasília é muito grande para deixá-las quatro ou cinco dias fechadas para produzir quase mil propostas. O SUS precisa ganhar o espaço público, mostrar o que faz e qual a sua importância para o Brasil. Precisa seduzir a antigos e novos militantes. Que tal usarmos a Conferência para isso?


Sobre o conteúdo, acho que o fato de tratarmos da Seguridade é um ganho para a Conferência. Mas essa definição poderia ser acompanhada por uma dinâmica de mesas em que fossem convidados os Ministros da área econômica para discutir o papel do SUS para o Brasil. Algo como um debate com o Ministério da Fazenda, do Planejamento, do BNDS, que são no final das contas as áreas que destinam ou não recursos para a saúde. Seria importante um debate com essas áreas para que a sociedade tivesse um espaço real de se expressar sobre o papel e a relação do desenvolvimento econômico com o social. Temas sugeridos para esse diálogo: Reforma Tributária, política de distribuição dos recursos do Pré-Sal, etc. Sinceramente, acho que nossas Conferências estão voltadas para nós mesmos e temos muita dificuldade de dialogar com outras áreas sociais e econômicas.  Ou seja, ficamos entre quatro paredes e não falamos para ou com a população em geral (até porque a grande mídia não pauta). De outro lado, não conversamos ou exigimos respostas da área econômica do governo (mesmo que os presidentes participem da abertura da Conferência).


É por isso que falo que o desafio é político e não técnico. Nosso desafio na 14ª não é pormenorizar nos mínimos detalhes como devemos implementar um programa X ou Y ou brigar por horas e horas em função de nomenclaturas que em muitos casos não vão além de trazer apenas problemas particulares ou localizados de determinados participantes. Nosso desafio é construir estratégias para que o SUS definitivamente conste na Agenda Nacional e que seja transversal ao projeto de desenvolvimento em curso. Para que isso se materialize, a realização de uma Conferência é muito pouco. Por isso, penso que temos um desafio enorme, que se relaciona aos grandes movimentos sociais deste país. O SUS precisa constar na agenda de lutas dos movimentos antes, durante e principalmente depois das Conferências.


CEAP: E o tema da Seguridade Social contribui para isso?


Penso que sim. O Conselho Nacional da Saúde acertou em propor a discussão da saúde dentro do marco ampliado da Seguridade Social. Ouvi um conjunto de indagações de lideranças e conselheiros sobre o tema. Algo como: “porque este tema”?, ou afirmações como “não sabemos o que fazer com este tema” e “não tem nada a ver com a discussão da saúde”. Acho que essas reações mostram uma espécie de falta de memória histórica ou mesmo uma dificuldade enorme, que é ruim para o SUS, das pessoas compreenderem o SUS dentro de um conceito ampliado de Seguridade Social.


Ao propor o debate da Seguridade Social e a partir dela discutir a saúde, parece que estamos retomando a necessária relação da saúde com outras áreas sociais, mas também buscando a importância da saúde como elemento estratégico do desenvolvimento brasileiro e mesmo mundial. Foi essa a importante mensagem final da I Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, realizada no Brasil em dezembro de 2010 e que reuniu representantes de governos e da sociedade civil de mais de oitenta países. O desafio é que esse movimento mundial em prol do direito humano à seguridade social, que implica discutir o papel do Estado, seja continuado dentro dos países e em nível mundial. Para o Brasil, esse debate indicou a importância estratégica de realizarmos uma Conferência Nacional da Seguridade Social. Em nível mundial, o Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social, realizado no Senegal em fevereiro de 2011, indicou a importância da realização da II Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, sugerida para 2013. Afinal, o contexto atual, dentro do qual estamos realizando o processo da 14ª, é de uma profunda crise do modelo capitalista, e quem paga a conta dessa crise já sabemos quem é. Afinal, uma das primeiras medidas adotadas pelos governos, inclusive de países ricos e que têm uma longa trajetória de implementação de Sistemas Universais de Seguridade Social, é cortar gastos na área social, na saúde, educação, etc. Mais uma vez a velha receita, “o mais do mesmo”, se repete...


Fonte: Boletim CEAP - Ano 4 - Nº 7 - Jan/Jul/2011


Disponível em:www.ceap-rs.org.br



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