terça-feira, 26 de maio de 2009

O direito à saúde em perspectiva mundial


FLAVIO GOULART
Consultor OPAS-DAB/SAS/MS

Introdução

A presente resenha trata de artigo recente (2008), publicado na prestigiada revista médica inglesa Lancet
[1], intitulado Health systems and the right to health: an assessment of 194 countries, resultado de um projeto de estudo interdisciplinar e multicêntrico com 18 meses de duração, envolvendo tanto especialistas em saúde como de direitos humanos, de organizações ligadas à ONU e não-governamentais, além de especialistas diversos.

O trabalho parte da consideração de que há 60 anos a Declaração Universal dos Direitos Humanos já havia disposto sobre os fundamentos do direito à saúde, dentro do conceito de highest attainable standard – melhor padrão possível de ser alcançado.

Neste trabalho se identificam aspectos diretamente ligados à questão do direito à saúde, analisados no âmbito dos sistemas de saúde mediante a utilização de 72 indicadores. Foram colhidos dados em 194 países, com detalhamento nacional para cinco deles (Equador, Moçambique, Peru, Romênia, Suécia). Nem todos os indicadores puderam ser levantados nas informações disponíveis nos países, o que, por hipótese, por si só daria uma medida da insuficiente atenção dada à questão do direito à saúde pelos organismos sanitários nacionais respectivos, segundo os autores.

O pressuposto é de que direito à saúde deveria ser uma questão central na gestão de sistemas de saúde que pretendessem ser efetivamente eqüitativos, considerando que os gestores nacionais de saúde deveriam assumir o compromisso legal de promover o alcance universal desse direito, dentro do conceito já referido de o melhor padrão possível de se obter.

Os indicadores levantados, onde puderam ser acessados pelo menos, demonstram que, de modo geral, os sistemas de saúde no mundo precisam ser bastante aprimorados para dar conta do direito à saúde. São feitas diversas recomendações neste sentido, dirigidas aos governos, aos organismos internacionais, às organizações da sociedade civil, além de organismos de pesquisa em saúde.

O Brasil e os outros países frente ao Direito à Saúde

Como o trabalho apresenta uma lista muito extensa (109 países), para efeito de análise comparativa com o Brasil foi selecionada uma amostra bem menor, com 12 países, de acordo com os seguintes critérios: (a) países latino-americanos com economia, extensão territorial e população mais significativas (Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela e México); (b) grupo dos BRIC (Índia, China e Rússia); (c) países desenvolvidos com históricos de sistemas de saúde consolidados no padrão de welfare states (Austrália, Canadá, Espanha e Reino Unido). Nas linhas abaixo a referida análise é realizada. Para informação mais detalhada, consultar o documento anexo.

A situação do Brasil neste quadro de indicadores, como seria de se esperar, é intermediária. Quando comparado aos “gigantes” do bem estar social no mundo, tomando como exemplo o Canadá, a Austrália, a Espanha e o Reino Unido a situação nacional de inferioridade, embora a disponibilidade de alguns dados seja maior aqui do que nos demais países.

Quando comparado, entretanto, aos outros países da América Latina (Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela e México), o Brasil, sem dúvida se destaca pelos melhores indicadores de cobertura das ações de saúde, pelo menos no caso da imunização para DPT e sarampo, além da assistência materna pré-natal. As estatísticas vitais são equivalentes, no caso da expectativa de vida ou mesmo ligeiramente melhores, para mortalidade infantil e mortalidade materna. Há mais dados disponíveis relativos ao Brasil do que dos outros países, embora neste quesito o trabalho se mostre um tanto incompleto, como se comentará adiante. No financiamento, o Brasil também apresenta uma situação semelhante aos demais países latino-americanos, por exemplo, no percentual do PIB gasto com saúde, que se situa aproximadamente na média. Os gastos militares brasileiros estão em torno de apenas 1% do orçamento nacional, o que também é uma situação sem dúvida melhor do que de outros países (no Chile e na Colômbia, por exemplo, são o dobro ou até mais). Já no chamado serviço da dívida, o Brasil tem pior desempenho, só superado pela Colômbia em seu dispêndio percentual.

Se a comparação do Brasil é feito com os demais membros do grupo BRIC (Índia, China e Rússia) o desempenho brasileiro nos indicadores de saúde é, de maneira geral, melhor, principalmente em relação à China e Índia, equiparando-se ao da Rússia na maioria dos aspectos.

O trabalho em foco, sem dúvida, tem sua importância quando procurar sistematizar, mesmo à custa de grande simplificação, a direção que os sistemas de saúde parecem assumir em relação a um quesito tão precioso como é o caso do direito à saúde, enunciando uma lista relativamente abrangente de tópicos que permitem sua caracterização, como se vê no quadro abaixo, que é uma súmula referente ao conjunto dos indicadores propostos.


1. Reconhecimento do direito ao melhor padrão possível de saúde
2. Não-discriminação
3. Informações disponíveis
4. Plano Nacional de Saúde explicitado
5. Participação social no sistema
6. Consideração dos determinantes de saúde
7. Acesso aos services de saúde
8. Política de Assistência Farmacêutica
9. Ações de Promoção da Saúde
10. Políticas para a força de Trabalho
11. Financiamento
12. Cooperação Técnica Internacional
13. Salvaguardas Adicionais
14. Percepção relativa ao direito ao melhor padrão possível de saúde
15. Monitoramento, prestação de contas, políticas compensatórias (redress)


Em relação aos diversos grupos de indicadores apontados, o primeiro deles, ou seja, o reconhecimento legal do direito à saúde (melhor padrão possível), tem no Brasil um paradigma, com os dispositivos constitucionais aqui vigentes. Isso, é importante ressaltar, não é um aspecto presente em todos os casos analisados. Com efeito, alguns desenvolvidos não possuem este tipo de garantia legal, como é o caso do Reino Unido, Austrália, Canadá, além de Índia, China e o próprio Chile.

Em vários outros aspectos, a situação do Brasil é igualmente positiva, por exemplo, na adesão a tratados e outros dispositivos de não-discriminação racial, sexual, social, religiosa etc. Da mesma forma em relação ao alto percentual de nascimentos registrados oficialmente, embora, curiosamente, este atributo não esteja presente em alguns dos países mais desenvolvidos. O Brasil se revela como o único país da amostra a disponibilizar dados em relação a violência contra mulher. Destaque também para as coberturas de imunização para DPT e Sarampo. No acesso a alguns serviços de saúde, chama atenção o desempenho nacional relativo ao exame pré-natal: 54,4% das gestantes o têm por no mínimo três vezes, uma posição bastante favorável na comparação com outros países, mesmo do grupo dos desenvolvidos.

Alguns aspectos assinalados, todavia, parecem omitir ou ignorar fatos importantes sobre o sistema de saúde brasileiro. Assim, por exemplo, são dadas como inexistentes no Brasil leis que protejam o direito de buscar, receber e dispor de informações em saúde, o que teoricamente existiria na maioria dos países, no que o país tem por companhia Chile, China, Rússia e Venezuela. Controversa, também, é a informação de que não ocorra no Brasil algum tipo de coleta regular, com base territorial, de dados relativos a mortalidade materna e neonatal, aspecto presente na maioria dos países. Isso, contudo, mostra contradição na seqüência do trabalho, na medida em que são apresentados dados brasileiros relativos a tanto, atualizados e correspondentes à realidade conhecida no Brasil. Instrumentos de análise de situação de saúde são dados como inexistentes no Brasil, o que não faz justiça ao grande esforço que a SVS/MS vem promovendo com a iniciativa RIPSA (com apoio da OPAS) e a divulgação de informações através do projeto Saúde: Brasil 2007. O indicador referente a um Plano Nacional de Saúde explicitado, abrangendo os setores público e privado, abre nova polêmica. Tal dispositivo é dado como ausente, o que não constitui inteira expressão da verdade em nosso país, embora, qualquer forma, tal informação esteja indisponível em relação à totalidade dos países. No quesito assistência farmacêutica o texto dá como não existente no Brasil uma política de acesso a medicamentos, bem como de uma lista nacional padronizada, o que evidentemente não é informação subsistente. Isso, aliás, aconteceria na maioria dos países, com exceção do México, segundo a pesquisa em foco.

A participação social no sistema de saúde é outro dos indicadores apontados, mas que não foi apurado em nenhum dos países estudados. Isso se revela como uma das inconsistências da presente análise, não só pela importância que tem na constituição da noção de direito à saúde, como pela justiça que deixa de fazer ao Brasil, justamente um quesito em que o país tem conquistas a mostrar.


Recomendações e conclusões


Considera-se que os indicadores propostos levantam informações importantes, que mesmo não sendo perfeitas podem fornecer indicativos e marcos referenciais para monitoramento do alcance do direito à saúde nos sistemas de saúde dos países, tanto na área das instituições públicas como das privadas.

A principal recomendação é a de que aqueles que compartilham poder decisório em saúde e direitos humanos nos países intensifiquem sua interação, com diálogo e cooperação mútua. É preciso, portanto, levar em consideração a análise do grau de obtenção do direito à saúde por parte da população em cada país e integrar este direito nas políticas e práticas dos respectivos sistemas de saúde Tais análises deverão ser repetidas periodicamente e espera-se, assim, que os países possam avaliar seus progressos neste campo, mediante monitoramento contínuo. Como o pressuposto é o de que os sistemas de saúde eqüitativos constituem uma instituição de importância essencial fundamental (“core”) na sociedade humana, isso implica em que a convergência entre as diretrizes e dispositivos operacionais dos sistemas e o direito à saúde, deve ser considerada como uma obrigação legal e não como uma ação opcional dos dirigentes.

A conclusão geral do estudo é de que os responsáveis pelos sistemas de saúde não estão dando atenção adequada à questão do direito à saúde. Neste sentido é que se recomenda: (a) aos organismos internacionais de saúde e de direitos humanos, na esfera da ONU e outras esferas que passem a adotar um papel apoiador em relação ao levantamento de divulgação de dados referentes aos aspectos vinculados a direito a saúde nos sistemas de saúde dos diversos países; (b) aos governos nacionais, que reconheçam explicitamente o direito à saúde e os aspectos legais dele derivados na legislação e normas dos respectivos sistemas de saúde; (c) à sociedade civil organizada, nos planos nacional internacional, que intensifiquem sua participação nos processos de planejamento e no monitoramento dos sistemas de saúde, bem como da defesa (advocacy) do direito à saúde como requisito que deve ser incorporado aos sistemas de saúde; (d) às instituições de pesquisa que apóiem os governos para que estes promovam avaliações de impacto relativas aos direitos humanos como um todo e o direito á saúde em particular.

Recomendações adicionais, entretanto, deveriam ser dirigidas aos autores do presente estudo. O trabalho peca ao omitir ou ignorar informações importantes sobre o Brasil, o que pode não ser resultado de má fé, mas certamente de certa indolência intelectual de não realizar buscas mais exaustivas e aprofundadas de informações que na verdade estão disponíveis. Provavelmente o que se fez foram levantamentos a toque de caixa ou por pessoas pouco experientes na busca de informações relativas aos países de cultura diferente, que talvez desconheçam o idioma no qual a maioria dos dados sobre o SUS está publicada, ou seja, o português. Que isso não sirva de desculpa, todavia: o sistema nacional de saúde do Brasil tem sido objeto de estudos e relatórios de organismos internacionais, tais como Banco Mundial e os textos assim produzidos, certamente em língua inglesa, devem estar disponíveis na web e em outras fontes. O Brasil e o SUS merecem, por certo, mais respeito...

[1] Gunilla Backman, Paul Hunt, Rajat Khosla, Camila Jaramillo-Strouss, Belachew Mekuria Fikre, Caroline Rumble, David Pevalin, David Acurio Páez, Mónica Armijos Pineda, Ariel Frisancho, Duniska Tarco, Mitra Motlagh, Dana Farcasanu, Cristian Vladescu. Health systems and the right to health: an assessment of 194 countries. Lancet 2008; 372: 2047–85. Published Online. December 10, 2008.

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